Fragmentos do Monólogo
“O Tempo Pingando dos Olhos”
de Maria Célia de Campos Marcondes.
(Baseado em fatos reais)
(...)“Fui aluna do Instituto de Educação Cel. Cristiano Osório de Oliveira em São João da Boa Vista, minha cidade natal. Aliás, uma excelente aluna, com excelentes notas. Mas, mesmo assim vivia isolada ninguém queria ser minha amiga. Um dia, minha mãe morreu.
O caixão na sala de visitas, meu pai, eu e algumas poucas e raras vizinhas. O corpo, parcas flores, as velas, a cruz...
De repente, começam a chegar os professores.
Meus professores do Instituto! Impossível, meu Deus!
Minhas colegas de classe!
A orientadora escolar! Não era possível!
Que felicidade senti! Eu existia, elas gostavam de mim, vieram ver-me!
Tinha vontade de dançar, de abraçá-las. Era o delírio!
O velório passou a ter-me outro significado. Era a aceitação de minha pessoa, era tudo o que eu queria! Eu existia, passei a ter visibilidade.
Tudo ficou melhor! Muito melhor! Parecia um sonho, uma festa! Tudo era irreal! Minha mãe morta, tanta gente em minha casa! Pela primeira e... única vez!!
Decepção! Meu sonho durou apenas os momentos em que estiveram ali. ‘Ele se desfez como a água na água. Minha nostalgia, minha solidão armaram-me uma cena impossível’ Quando retornei à escola tudo era igual. Exatamente como sempre fora! Ignoravam-me.”
Falo de agrestes
Pássaros de sóis
que não se apagam
de inamovíveis
pedras
de sangue
vivo de estrelas
que não cessam.
(...)“Sempre fui uma amante dos livros e dessa maneira era grande freqüentadora da biblioteca do Dr Oliveira Neto. Ele e seus livros reforçaram os alicerces da minha formação literária.
Estava sempre também na biblioteca da escola. A bibliotecária era Dª Maria Leonor. Até como leitora tive minhas desditas, Dª Maria Leonor chamou-me à biblioteca e disse-me que não mais iria me emprestar livros, porque eu recortava, com gilete, todas as palavras “homens”.
Neguei! Disse-lhe: que diferença fazia a palavra “homem”, “mulher”, ou qualquer outra. Era tudo igual. Ora bolas eram apenas palavras!
No entanto, Dª Zezé Lopes chamou-me em sua sala e eu não consegui mentir-lhe. Confessei tudo! Era eu quem recortava a palavra “homem” dos livros.
Por que?
Não sei! Não sei!.
Ela me prometeu não contar a ninguém. Assim o fez e eu continuei a cortar a palavra “homem” dos livros que lia.”
Estranho impulso levava-me a isto. Eu não conseguia controlar-me, por mais que tentasse.”
A beira do rio o silêncio
dos peixes.
a beira do rio nem
a espera.
A água não cessa
e o rio
nunca passa.
A beira do rio
a lucidez
a
pedra
e a pedra é
pedra: não germina.
Basta-se.
(...)”Mas, nas minhas subjetivas e concretas desditas eu tive o amor de meu pai. Como conversei com ele! Era meu amigo! Meu único e fiel amigo! Andávamos sempre juntos pela cidade, às vezes de braços dados, outras vezes, eu mais à frente. Nestas ocasiões, olhava para trás para que pudéssemos conversar. Quanto tropeção e alguns tombos levei, devido a esse costume.
Ele carregava sempre um guarda-chuva dependurado no braço, dizia que era para proteger-me. Proteger-me, fez isso a sua vida inteira! Do que efetivamente pretendia proteger-me, nunca soube. Mas sabia o quanto nos amávamos! Um amor sem restrições, absoluto na sua forma mais abstrata. Um amor que só alguns poucos têm o privilégio de conhecer.
No entanto, achavam esquisito nosso relacionamento. Olhavam-nos de soslaio, e através de nossos olhos míopes e das grossas lentes de nossos óculos, percebíamos estranhos e enigmáticos olhares.
Gostávamos muito de cinema e não perdíamos a um só filme. Sentávamos sempre isolados porque ninguém gostava de ficar próximos a nós.
Mas eu sei o motivo!
Nós tínhamos sensações, não éramos frios como os outros que se escondiam atrás de seus próprios sentimentos, abafando-os, sufocando-os.
Eu e meu pai, não! Vivíamos, vibrávamos com a história que desenrolava na tela. Manifestávamos alto nossas emoções. Chorávamos, ríamos, dávamos recados aos atores, gritávamos para que eles tomassem cuidado, avisávamos dos perigos que corriam e ... “
A um passo
do pássaro
res
piro.
(...)“Certa ocasião uma professora declamava “O Navio Negreiro” de Castro Alves.
Parece-me ainda, ouvi-la...
(...)“Mas que vejo eu aí...que quadro d’amarguras.
Que fúnebre cantar!...Que tétricas figuras!...
Que cena infame e vil...Meu Deus! Meu Deus!
Que horror!...
(...) O tombadilho em sangue a se banhar.
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar.
Era um sonho dantesco, tanto horror perante os céus.”
Não aguentei. Fiquei em pé e alucinada, com as mãos na cabeça disse alto: “Que horror, que sofrimento, meu Deus!”
Vivia tão intensamente o poema que sofria com o sofrer dos escravos, chorava suas lágrimas, doíam-me suas dores. Porém, ninguém entendia isso. E... todos riram.
Eu, que já estava em prantos pela cena descrita, agora chorava porque pessoas insensíveis riam-se de mim.”
Ao meio dia a vida
É impossível
A luz destrói os segredos
A luz é crua contra os olhos
Ácida para o espírito.
A luz é demais para os homens
(porém como o saberias
se não viesses a luz de
ti mesmo?)
Meio dia! Meio dia!
A vida é lúcida e impossível!
“O Tempo Pingando dos Olhos– é trecho do poema Contaminação—livro Teia de Orides Fontela.”